sexta-feira, 13 de maio de 2011

Espelho

O relógio digital mudou seus números, indicando quinze horas, seguido do som da rádio local. Ao ouvir a música, abafada pelo chuveiro, John fechou o registro e começou a preparar-se.

Minutos depois, fazia o nó da gravata vermelha, sua cor preferida, enquanto assoviava. Era um homem comum, com pouco mais que cinqüenta anos, de cabelos levemente grisalhos e barba bem aparada.

Era um dia decisivo, pois seria julgado mais uma vez. Já havia perdido a conta das vezes em que estivera em um tribunal e sempre, por astúcia própria, conseguia se safar. Encarou seu reflexo no espelho e quando sorriu para si, confiante que tudo daria certo naquele dia, sua imagem não retribuiu o gesto, fazendo-o erguer a sobrancelha, espantado.

- Você... – murmurou, lembrando-se do passado, cerca de trinta anos atrás.

Era outro quarto, de uma casa bem maior, na qual uma vida promissora iniciava-se. Elizabeth havia engravidado antes de completarem um ano de casados e, por ser o primeiro neto de ambos os lados, causou grande euforia nas famílias. Por volta do oitavo mês de gestação, John teve dificuldades em dormir, pois Beth como a chamava, mexia-se bastante durante a noite. E numa das diversas madrugadas perambulando pela casa, revelou à penumbra seus anseios... Havia casado jovem e estava prestes a ser pai. Suas noites de aventuras com os amigos haviam acabado. Não haveria mais a emoção de pisar fundo e ver o velocímetro atingir seu limite ou levar para a cama as maravilhosas beldades que poderia conquistar. Era o fim daquela vida.

Quando retornou ao quarto, sentou-se à frente do espelho e encarou-se, procurando em seu semblante o homem que deveria tornar-se. Apenas a fraca luz do abajur iluminava o quarto. A temperatura havia baixado, apesar das janelas fechadas.

Sua esposa moveu-se inquieta, chamando sua atenção. Mas quando voltou seu rosto para observá-la, notou pelo espelho que um vulto acariciava sua barriga. Levantou-se assustado e procurou pelo quarto, sem nada encontrar. Olhou para o espelho novamente. Estava ofegante, sentindo o coração bater fortemente. Vasculhou novamente o quarto e nada encontrou.

- Preciso dormir... - pensou.

Sentou-se novamente, temeroso em olhar no espelho. Deixou as sandálias de lado e riu de si próprio. Não se conformava em estar com medo de encarar o próprio reflexo. Permaneceu ali, imóvel, decidindo se deitaria rapidamente e cobriria a cabeça ou se levantaria os olhos e encararia seu medo. Por fim, olhou no espelho.

- Minha Nossa! – ergueu a voz ao ver que seu reflexo estava de pé, apoiado com os braços no vidro, encarando-o.

- Não é para tanto... – respondeu o reflexo. E olhando por cima dos ombros, para a mulher grávida, aconselhou: - Baixe a voz, são três da manhã... Você não quer acordá-la.

John levantou-se pasmo. A abordagem o acalmara estranhamente. Caminhou até o espelho e permaneceu ali, paralisado.

- Por favor, permita-me apresentar-me... – sussurrou o reflexo.

- Sim... – respondeu quase sem voz.

- Sou um homem de riquezas e muito bom gosto. Ora... Sou você! Sua outra vida... Sou aquilo que você perdeu. – continuou.

- Eu perdi para ganhar... – respondeu John, considerando-se maluco por falar consigo mesmo.

- Claro... Você está bem. Está feliz. Não há razão para eu estar aqui, você não quer saber como seria a noite de hoje, na sua outra vida... – o reflexo insinuou que partiria, se é que fosse possível fazê-lo.

- E como seria? – John incentivou-o a continuar.

- É difícil explicar... Mas, coloque sua mão na minha e terá sua amostra grátis. – o reflexo sorriu, estampando a mão no vidro.

John hesitou. Pensou nos seus anseios e disse a si mesmo que não tinha nada a perder com aquela loucura. Como seria sua vida se não tivesse feito um juramento de fidelidade com Beth? Respirou fundo e, hesitante, tocou a mão na de seu reflexo. Nada aconteceu.

Seu reflexo sorriu e sentou-se na cama, observando-o. John encarava-o com expressão confusa. Quando resolveu dizer algo, uma voz suave chamou-o:

- Vai nos deixar esperando, John?

Quando se virou, engoliu em seco: Duas mulheres maravilhosas, em trajes provocativos, decoravam sua cama. Encarou seu reflexo, aguardando instruções.

- É sua vida, garoto, quando terminar basta me chamar e tocamos as mãos... – disse o reflexo, deitando-se. – Se quiser, poderemos fazer isto por algum tempo... Mas o que vai fritar seus miolos é a natureza do meu jogo.

Assim havia ocorrido e John ignorara o comentário. E na noite seguinte repetiu-se. Através do espelho, John teve acesso à vida de que havia abdicado. Durante o dia, vivia com Elizabeth. À noite, tinha livre acesso a seus desejos mais profundos.

Com o avanço da gravidez, Elizabeth teve seu humor alterado e, com o sono acumulado, algumas desavenças começaram a ocorrer. Era fácil dormir de dia para escapar dos incômodos diários e, durante a noite, experimentar sua outra vida. No dia em que uma discussão inflamou-se e Elizabeth fora esfriar a cabeça na casa de sua mãe, John esperou ansioso até que o relógio marcasse três da manhã.

Ela havia exagerado nas palavras e ele, ofendido, não via a hora de encher a cara e esquecer daquela vida. Mas quando o relógio mudou seus números e o reflexo moveu-se por conta própria, somente John colocou a mão no espelho.

- Vamos! - pediu com olhos marejados.

O reflexo moveu a cabeça negativamente.

- O que foi? - John irritou-se.

- As regras mudaram... - declarou o reflexo, irredutível.

- Como assim, regras? Nunca houve regra alguma... - revoltou-se.

- Como não? Você sempre teve que segurar na minha mão para vir para meu mundo. – respondeu o outro, abrindo os braços.

- E o que devo fazer agora?

- Acalme-se... – o reflexo ergueu uma sobrancelha, observando-o. – Chega uma hora em que você tem que se decidir... Ou realmente acreditou que viveria duas vidas para sempre?

- Já me decidi! – John forçou a mão contra o espelho. - Vamos logo!

- Não quer pensar um pouco? – perguntou o reflexo, aproximando-se.

- Tive um pouco de cada vida nas últimas semanas... Já pensei por tempo suficiente. – respondeu.

- Você é quem manda, garoto. Lembre-se de que não tem volta.

- Toque minha mão! – ordenou John .

- Desta vez, você precisa cortá-la. Tem que ter um pouco de sangue, para mostrar que você realmente quer isto. Regras... – o reflexo riu.

John deu um passo para trás e procurou pelo canivete nas gavetas, pegou-o e cortou a mão. O reflexo seguiu seus gestos impecavelmente. Os dois caminharam, estenderam os braços e tocaram-se.

O telefone tocou, fazendo-os olhar em volta, confusos. O reflexo afastou-se, atendendo a ligação.

- Alô? Oi, sogra! Ah é? Claro... Claro... Estou indo!” - desligou o telefone e levantou-se apressado.

- O que aconteceu? – John perguntou do outro lado do espelho.

- Meu filho está nascendo! – relatou o homem. - Mas isso não é mais da sua conta garoto.

- Como assim?

- Tá vendo o sangue no espelho? Você deixou esta vida. Sua alma agora pertence ao outro lado... O melhor é curtir, hein.

- Mas... O que eu faço agora?

- As mulheres estão aí... – o reflexo lembrou-o, antes de fechar a porta.

– O complicado é que depois de um tempo, ficar sempre olhando para este quarto enjoa.

- Você... – John voltou a si, deixando a viagem no tempo para trás. Sorriu novamente para o espelho e murmurou:

- Ninguém melhor do que você para saber que não quero conversa com meu reflexo, mas vou explicar novamente: Já faz trinta anos... Pare de ficar nos olhando. Eu quero dormir em paz com sua mulher e brincar sossegado com seu filho e os meus outros dois diabinhos. Um homem quer privacidade...

- Demônio! – O reflexo exaltou-se, batendo os punhos contra o vidro.

- Não é disso que sua esposa me chama...

- Demônio! - John batia os punhos contra o vidro.

- Preciso ir... Minha vida anda um pouco conturbada... – John afastou-se e, após apagar a luz, declarou:

- Aproveite as mulheres... Este corpo já não é o mesmo. Acho que logo nosso pacto se consumará.

Muriel Lobato

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